Morreu o Idalécio das Ovelhas. Nascido e criado no seios das classes populares e numa situação de claro desfavorecimento social, numa época em que se intensificou o processo de globalização social e o agudizamento das relações de exploração capitalista, o Idalécio fazia parte daquilo que hoje os cientistas sociais designam de subclasse, onde se encontram os sem abrigo, toxicodependentes e outros sem nada, que crescem um pouco por todo lado, associados às dinamicas das sociedades capitalistas no seu estádio de evolução actual.
O que me faz falar do Idalécio das Ovelhas, é perceber que as condições sociais de existência continuam a marcar claramente os destinos sociais dos indivíduos. Eu tive a possibilidade, ocupando uma zona do espaço social à nascença muito próxima da que fazia existir o Idalécio, de construir uma vida considerada minimamente condigna e que assegura uma existência social com um mínimo de decencia. Os meus pais, que sempre me asseguraram o fundamental e incutiram na minha pessoa a sensibilidade para a importância da escolarização nos destinos sociais dos indíviduos, foram também essenciais na transmissão de valores e estiveram sempre na retaguarda sempre que precisei do apoio necessário.
O Idalécio cedo entrou em trajéctórias desviantes, roubou e foi preso. Entrou pois, noutra escola, de outra vida, escola essa que tem sido um autêntico desastre no seu objectivo da reinsersão social. O estigma, sim, o estigma, é aquela terrível marca que se cola ao rosto e que nos acompanha por toda a vida.
Depois do estigma nada ficará como dantes. Todas as semanas me pedia o Idalécio uma moedinha e todas as semanas lhe dava eu a moedinha. Nem pensava para que serviria. Isso também não interessava. Quando atingimos certas formas de vida é a nossa dignidade que já se foi à vida. É o sinal que apenas vamos existindo. É sinal de que a sociedade convive bem com a indiferença e a desgraça dos outros. Quantas vezes não senti o incómodo que gera a interacção que solicita a moedinha. Quantas vezes os sentimentos contraditórios não se apoderaram de mim.
A última vez que o vi, o Idalécio sentou-se na minha mesa do café e contou que estava desgostoso porque os peritos da medicina o queriam internar no hospital dos "malucos".
Depois, depois foi o fim. Foi a foto que marca a nossa passagem para o além, exposta numa das paredes do mercado. Um dia, serei eu a estar ali.
Tinha quarenta anos. E a estória do Idalécio é a história da sociedade que todos os dias vamos construíndo.
O Idalécio tinha o irmão, o Adelino das ovelhas.Também a este a vida não sorriu e hoje por aí anda aos tombos, alienado, só e triste.De cada vez que o encontro assola-me a alma um misto de pena e raiva.É que o Adelino foi meu companheiro na escola paga das Mecancas, ali na Corredoura,e com ele partilhei momentos felizes de brincadeira inocente.Já na escola primária perdi-lhe o rasto e não sei a partir de quando a má sina dele se apossou para sempre.Do que tenho a certeza é que não tinha que ser assim.
ResponderEliminarSorte triste a do meu amigo e que mundo este o nosso que se consente na indiferença e não percebe que os adelinos são uma ofensa à inteireza dos homens.
Vítor Aleixo
Bem descrito e triste post este do João Martins , assim como o humano comentário do amigo Vítor Aleixo. Também eu me recordo da meninice desses dois irmãos a quem a vida não sorriu como acontece a muitos milhões de seres humanos por este mundo fora. O pior que podia ter acontecido a ambos foi o falecimento, primeiro do pai e depois da mãe. Apesar das vicissitudes e do «mundo» para onde foram empurrados, se tivessem os pais vivos a sua vida teria sido bem diferente do que foi nestes últimos anos. Conversei muitas vezes com a mãe que tudo fazia para
ResponderEliminaros encaminhar e retirá-los da triste itenerância que levavam, sobretudo quando passaram algumas vezes pelos Tribunais e Estabe. Prisionais. Será que alguma vez e nalgum lugar todos os seres humanos
ou pelo menos a maioria conseguirão ultrapassar estes terríveis caminhos que a muitos parece estar destinados ? Palma
Bem ... mais palavras nada acrescentam ao falado no post e aos vossos 2 comentários ... mas o meu grito de revolta fica aqui ... como diz o outro: roubas mil és ladrão, roubas 1 milhão és barão ...
ResponderEliminarLila