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sábado, julho 19, 2008

Dos pobres úteis e merecedores e dos pobres inúteis que nada merecem: Na ordem do dia


As representações sociais dominantes na sociedade portuguesa sobre a pobreza e os pobres têm presentes uma célebre dicotomia, antiga, de séculos, que divide os pobres em duas grandes categorias:

- Por um lado temos os pobres úteis, merecedores, obedientes, bem comportados e pouco incomodativos face à ordem social dominante. São os pobres que até querem trabalhar e por isso devem ser merecedores das ajudas estatais. Sobretudo, não são "disruptivos" do actual sistema capitalista e da sua busca incessante do lucro. Subordinados e por vezes explorados, mas de extrema útilidade.

- E por outro lado, os pobres inúteis, não merecedores da "caridade" do Estado, "disruptivos" da ordem social dominante, que não são dóceis como mão de obra trabalhadora, que vagabundeiam pelas ruas das cidades com a sua genética e "natural" preguiça e que não merecem as "esmolas" da "caridade" estatal.

Para estes últimos, onde se situam "naturalmente", os ciganos, os toxicodependentes, os vadios e os ladrões de algibeira (não os de colarinho branco evidentemente) aquilo que se pede é que desapareçam da vista dos "bons" cidadãos, que estes, cumpridores e devotos face ao Estado e às suas obrigações (sobretudo a pequena burguesia citadina e uma boa parte das classes populares) não admitem tamanha incúria daqueles a quem rotulam de "escória social".

Estes últimos, os "bons" cidadãos, sofreram as passinhas do Algarve para subirem na vida e à custa sempre do seu "esforço" e do seu "mérito" e não admitem que isso da habitação social, ou mesmo, o rendimento social de inserção, seja algo que possa fazer bem à "sociedade".
Para estes, o Estado nunca, mas nunca, em caso algum, deveria financiar a preguiça, pois essa é a grande tragédia responsável pelo nosso "atraso" social.

Inquiridos os portugueses sobre as causas da pobreza num estudo levado a cabo em 2007, um terço da população portuguesa respondeu que a culpa da pobreza era dos próprios pobres, evidentemente derivado da sua "natural" preguiça e outro terço respondeu que isso de ser pobre era coisa do "destino" dado por Deus. O que quer dizer, que dois terços da população portuguesa, atribui a responsabilidade da pobreza, aos próprios pobres ou a causas divinas.

O que nos leva a poder dizer, como recorda o especialista dos estudos sobre a pobreza, Alfredo Bruto da Costa, que a população portuguesa não está preparada para o combate às questões da pobreza em Portugal.

Nada que o grande Eça de Queiróz já não tivesse denunciado. Leiam com a devida atenção que garanto que vale a pena:

"Além disso, ele reconhecia que a caridade era a melhor instituição do Estado. Quanto ao pauperismo, tinha-o como uma fatalidade social: fossem quais fossem as reformas sociais, dizia, haveria sempre pobres e ricos: a fortuna pública deveria estar naturalmente toda nas mãos de uma classe, da classe ilustrada, educada, bem nascida. Só deste modo se podem manter os Estados, formar as grandes indústrias, ter uma classe dirigente forte, por possuir o ouro e base da ordem social.

Isto fazia necessariamente que parte da população "tiritasse de frio e rabiasse de fome". Era certamente lamentável, e ele, com o seu grande e vasto coração que palpitava a todo o sofrimento, lamentava-o. Mas a essa classe devia ser dada a esmola com método e discernimento: - e ao Estado pertencia organizar a esmola.

Porque o Conde censurava muito a caridade privada, sentimental, toda de espontaneidade. A caridade devia ser disciplinada, e, por amor dos desprotegidos regulamentada: por isso queria o Asilo, o Recolhimento dos Desvalidos, onde os pobres, tendo provado com bons documentos a sua miséria, tendo atestado bons atestados de moralidade, recebessem do Estado, sob a superintendência de homens práticos e despidos de vãs piedades, um tecto contra a chuva e um caldo contra a fome.

O pobre devia viver ali, separado, isolado da sociedade, e não ser admitido a vir perturbar com a expressão da sua face magra e com narração exagerada das suas necessidades, as ruas da cidade. "Isole-se o Pobre!" dizia ele um dia na Câmara dos Deputados, sintetizando o seu magnifico projecto para a criação dos Recolhimentos do Trabalho.

O Estado forneceria grandes casarões, com celas providas de uma enxerga, onde seriam acolhidos os miseráveis. Para conseguir a admissão, deveriam provar serem maiores de idade, haverem cumprido os seus deveres religiosos, não terem sido condenados pelos tribunais (isto para evitar que operários de ideias suversivas que, pela greve e pelo deboche, tramam a destruição do Estado, viessem em dia de miséria, pedir a esse mesmo Estado que os recolhesse).

Deveriam ainda provar a sobriedade dos seus costumes, nunca terem vivido amancebados nem possuírem o hábito de praguejar e blafesmar. Reconhecidas estas qualidades elevadas com documentos dos párocos, dos regedores, etc.; seria dada a cada miserável uma cela e uma ração de caldo igual à que têm os presos".

Eça de Queiróz em "O Conde de Abranhos" pag.34 e 35.

Que se comprove com bons documentos a sua miséria e que se apresentem os atestados de moralidade...depois decida-se da esmola...ou então...Isole-se o pobre!

Abraços e bom fim de semana

Ps: Partes deste post já tinham sido reproduzidas em post do ano 2007.

6 comentários:

  1. O Eça e outros grandes escritores ultrapassam épocas sobre épocas e sempre infelizmente actualizados. É evidente que há uma diferença abismal a todos os níveis da época em que viveu o Eça para os tempos de hoje. Mas os males de hoje ainda estão dentro do contexto do texto do grande escritor do bigodinho. Ajudemos pois todos nós com a nossa parte(zinha) esta sociedade que precisa de empurrão atrás de empurrão para subir uns degrauzinhos ( que a gente até nem somos muito exigentes rsrs). Bom Sãbado. Palma

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  2. Onde a coisa está a chegar? Onde deve chegar uma responsável discussão sobre o mais urgente assunto da nossa sociedade!
    Sendo verdade e plenamente afirmadas as base de um política social justa numa sociedade humanista (capitalista ou não), resta a questão da convivência e o cumprimento da Lei que deve ver igualmente justa, não agressora da matriz identitária de cada Povo, Étnia ou Grupo!
    Foi isto que pretendi dizer, nunca defendi a retirada de apoios a quem não a cumprisse, antes entendo que deve ser encontrada forma de fazer cumprir as regras da convivência inter-pessoal.
    Em que ficamos: As autoriedades não exercem o seu dever de zelar pela Paz Social para não segregarem os infractores à Lei? Vamos tolerar que a Violência se instale? Porque insiste o João em referir os Ciganos quando foi um Caboverdiano que ofendeu a moral Cigana? Porque se há-de resolver nas Ruas aquilo que às Famílias e ao Tribunal compete?
    Por muitos erros e ignorâncias que o Sistema Nacional tenha cometido tem que existir uma via de resolução da Violência pelo diálogo, ou então ficaremos a adorar o "bom selvagem" que nos vai semendo uma Guerra!

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  3. Totalmente de acordo com o Snr. Sebastião. Às Famílias e aos Tribunais é que compete solucionar estes assuntos. Não nos podemos deixar conduzir por certos jornais que quase incitam ao ódio. Bom fim de semana para este bom blog e para os seus intervenientes. Melo

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  4. Antes de se exigir que se resolvam os problemas após as suas consequências, dever-se-iam compreender as causas do mesmos e preveni-los com políticas sociais e habitacionais que não resultem naquilo que assistimos. Ou será que as erradas políticas de habitação e de realojamento não têm nada que ver com estes "casos de polícia"? É que essa estória as televisões não mostram e nem sequer contam...sim...a estória de como se fabricam politicamente estes "concentrados de problemas sociais".
    Caberá aos políticos sérios não explorar demagogicamente estes assuntos.
    Perdoem-me tanta utopia e obrigado pelas vossas visitas...

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  5. Pois João; assim começamos a estar mais de acordo! Mas a compressão habitacional não pode ser a causa única dos conflitos que originam a violência, sendo antes e a meu ver, lacunas na preparação para a Cidadania junto dessas e das demais populações que facilitem a integração e assimilação (esta eu sei quenão aceita)no todo social.
    Mesmo uma sociedade regida pelos princípios da mais pura Anarquia científica necessitaria de adoptar regras elementares de respeito pelo outro e aí não seria a habitação o diferenciador. O que destingue o grau de inclusão é muito mais educação e cultura que trabalho e moradia!

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  6. Amigo Almeida,
    Ora aí está uma séria discussão que a complexidade do problema não permite abordar num simples post ou comentário de blogue. Aos políticos, eu aconselharia, se mo permitissem, escutar os especialistas que trabalham sobre este assunto. Eu não o sou certamente, o que não me impede de observar que isso normalmente é coisa que não interessa aos políticos. Preferem as suas teorias, que são tão válidas como as minhas, que não sou especialista. Mas que desprezam o conhecimento científico produzido sobre estas questões disso não tenho dúvidas. E depois enchem-nos os ouvidos na TV com todo o tipo de disparates. Nada de novo a Leste portanto...são os princípios da anarquia política...de esquerda ou de direita...Em breve se não recusar o debate (penso que não o fará com certeza) cá estaremos a falar de "segurança"...as eleições estão aí à porta e o tema de certeza que vai estar quente...
    Cumprimentos discordantes mas salutares...pois da discussão nem sempre nasce a confusão...e às vezes nasce a luz...

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