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sábado, fevereiro 09, 2008

A morte saiu à rua: A politização da morte na blogosfera louletana

Interessantíssima a discussão sobre a morte e o ritual funerário promovida pelo blogue Sebastião a propósito do culto dos mortos na freguesia de São Sebastião.

Defende o autor do blogue, a propósito da Capela Mortuária da Igreja de Sant'Ana, que se melhor o conforto prestado aos utilizadores de tais serviços, aperfeiçoando as condições de estadia do espaço de culto e simultaneamente, propõe novos trajectos dos cortejos funerários em direcção ao cemitério, para evitar a exposição do ritual funebre junto das crianças que frequentam as escolas, por onde o mesmo passa e para evitar eventuais incómodos causados pelos engarrafamentos de trânsito junto dos edifícios escolares.

Nobre a preocupação com as condições do conforto na hora do luto, mais discutível, a preocupação de "esconder" a morte para evitar os traumas das nossas criancinhas e muito pertinente, a preocupação com os engarrafamentos junto das escolas.

Muito interessante, também, um comentário de um leitor, que presumo ser do interior rural do concelho de Loulé, sobre a desigualdade de condições face ao direito a um ritual funebre digno na hora da morte dos entes queridos.

Diz-nos este leitor:
"Em relação a este assunto gostaria de saber porque é que dentro da própria Freguesia de S. Sebastião existe um tratamento diferenciado nos cortejos e velórios funerários?
Para os habitantes do Monte Seco continua tudo na mesma, pois realizam os seus velórios na Capela do Monte Seco e depois vêm para a Igreja de S. Francisco; para os habitantes de Vale Judeu é mesma situação.
Com isto eu concordo! Penso que deveria ser igual para toda a zona rural da freguesia, uma vez que a alteração agora verificada causa o maior transtorno às populações do Parragil, Picota, Boa Hora, Soalheira, Palmeiral, Varjota, etc…
Que têm que velar os seus ente queridos numa capela distante, desprovida das condições mais elementares, no cimo de uma escadaria, sem espaço! Mais evidente por vezes, quando se realizam vários funerais em simultâneo, com a Freguesia de S. Clemente.
Questiono-me: Porque é que as populações dos sítios que referi atrás não podem realizar os seus velórios da mesma forma como fazem os habitantes do Monte Seco e Vale Judeu? Até porque também estaria disponível a Igreja da Boa Hora para os velórios, mesmo que seja numa situação provisória, ou a própria Igreja de S. Francisco!"

A morte é também ela feita de desigualdades e hierarquias sociais. Também aqui a política deve intervir para repôr a igualdade de condições.

Muito interessante ainda é o facto da discussão ilustrar o fenómeno da privatização da morte nas sociedades ocidentais capitalistas.

Foi o crescente movimento de secularização, de racionalização e de individualização que acompanhou o desenvolvimento do capitalismo industrial que fez com que a morte se torna-se assunto tabu a varrer para debaixo do tapete social.

Como demostrou o conceituado historiador Philipe Ariès, tempos houve em que a morte não era escondida.

Segundo Ariès (2003, p. 84), "Com o fortalecimento da doutrina capitalista, há uma nova atitude diante da morte e dos mortos. Se até o século XVIII não havia separação radical entre a vida e a morte, a partir do século XIX essa separação se acentua, pois há o desenvolvimento acelerado do individualismo, do pensamento racional, da secularização da vida quotidiana.

Os enterros que até então eram realizados nas igrejas vão paulatinamente sendo objecto de inúmeras discussões, pois aos poucos o sepultamento nos templos religiosos vai perdendo seu carácter sagrado, assumindo um estigma cada vez mais profano. Seria o desenvolvimento da “morte selvagem”, e o fim da “morte domada” ou “familiar” que teria vigorado até então.

A “morte familiar” vigorou no Ocidente Católico por toda a Idade Média até o século XVIII, quando se buscava uma total aproximação da morte e dos mortos.

Uma boa morte era representada pela previsibilidade dos findos dias, para que o moribundo assim pudesse preparar nos mínimos detalhes os ritos fúnebres necessários para uma passagem tranqüila para a companhia de anjos e santos. Os últimos dias de vida tinham que ser vividos na colectividade com a companhia de parentes, amigos, irmãos de confraria. O sepultar na igreja onde o indivíduo havia freqüentado durante toda sua vida era de fundamental importância, numa relação estreita com o mundo dos vivos.

Já a “morte selvagem” desenvolvera-se principalmente a partir de meados do século XIX, caracterizando-se pela idéia de repulsa e afastamento do morto da convivência com os vivos. Era preciso o desligamento do falecido da convivência humana para que pudesse sair do plano palpável dos vivos e entrar em contacto com a sociedade de seus ancestrais. Era o penoso processo de preparar e enviar o “de cujus” para um suposto “reino dos céus”.

A morte era cada vez mais individual, ficando os rituais fúnebres reservados somente aos parentes mais próximos. Dentro dessa perspectiva, uma das principais provas desse afastamento entre vivos e mortos era a difusão da ideia de transferir os enterros das igrejas para cemitérios longe do espaço urbano, separando, assim, a sociedade dos vivos da sociedade dos mortos."

Deve a morte ser escondida ou devemos desde crianças aprender a encarar a morte com naturalidade?

Pela minha parte gostava de ver discutida a questão para desmistificar este grande tabu. Até porque a morte estando desde a nascença biologicamente predestinada é um assunto profundamente cultural.

Ela constitui aquilo que o célebre antropólogo Marcel Mauss designou como facto social total, pela sua dimensão social, cultural, económica, demográfica, jurídica, política...em todo o tempo e em todo o lugar...ninguém lhe pode escapar.

Nós ossos que aqui estamos pelos vossos esperamos...

Bom fim de semana

1 comentário:

  1. Upa, upa!
    É, com efeito um assunto que justifica um amplo estudo e debate.
    Quero concentrar-me na "dignidade" da morte e na sua proximidade do meio em que o falecido morreu, sendo para tanto justo que os "sítios" encontrem locais próprios para tais rituais cristãos ou não. As desigualdades na morte são a injustiça final e sem remissão que se pratica para com os falecido, seus familiares e amigos. Interessa-me também que o ritual fúnebre seja menos espectáculo e mais reflexão, evite danos colaterais e involuntários; referi as crianças mas poderia referir os residentes nos arruamentos agora utilizados pelos cortejos. Devo admitir que não os aprecio particularmente e os considero uma ancestralidade incómoda para a "vida moderna",que seria bom evitar, mas não vejo como!

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