O mínimo que podemos exigir, por José Vítor Malheiros
1. A campanha eleitoral para as europeias já começou e agora vamos ter de aturar doze dias de mentiras descaradas, de reescrita da história recente e de provocações do PSD e do CDS e doze dias de discursos absolutamente vazios de conteúdo do PS, dando uma no cravo e outra na austeridade, sempre empenhado em atacar o Governo com veemência ma non troppo, num daqueles exercícios de hipocrisia e de língua de trapos que são a razão do crescente desencanto dos cidadãos com a democracia. Vamos ver Paulo Rangel com a irritação descabelada que se compreende em quem passou a ser mais magro que Nuno Melo (Nuno Melo é aquele candidato que aparece ao lado de Paulo Rangel), e Francisco Assis, sempre preocupado em dar de si mesmo uma imagem de grande sentido de responsabilidade, a tentar mostrar como qualquer política com o mínimo cheirinho a esquerda pode conduzir a um cenário dantesco e como não seria preciso muito para que o PS fizesse uma vaquinha com os partidos do Governo. À esquerda vamos ver o Bloco a mostrar como a inclusão de independentes nas suas listas prova o seu empenho numa audaciosa política de amplas alianças à esquerda e a desencantar argumentos que explicam como a crescente contestação popular da austeridade e o reforço social da esquerda se deverão traduzir naturalmente numa perda de mandatos. E ao lado vamos ter a CDU, cujo esperado aumento de votos irá caucionar a sua pose isolacionista e reforçar a sua convicção de que é imprudente e precipitado sonhar com uma solução governativa à esquerda antes de 2060.
2. O espectáculo da campanha vai ser triste, mas o que será mais desolador será ver a quantidade de votos que os partidos do Governo vão, apesar de tudo, recolher, ilustrando as limitações da democracia. Assim como é desoladora a prevista vitória do PS, cujas promessas eleitorais e prática política se situam não no domínio da real alternativa e da construção de uma sociedade mais justa mas no domínio da nuance em relação ao PSD. As poderosas máquinas de propaganda do poder (construídas para eternizar o que está), dos media à escola, as reais interdependências do mundo globalizado, o consumismo comodista produzido pelo mundo industrial e as esperanças políticas frustradas conjugaram-se para criar um espartilho de onde nos é difícil sair. Já não se deixou apenas de acreditar nas utopias libertárias que nos prometiam a paz e a felicidade e nas revoluções sociais transformadoras que nos prometiam a liberdade e a igualdade. A esmagadora maioria parece ter deixado de acreditar na possibilidade de um progresso radical da sociedade, de tal maneira que falar simplesmente de “uma sociedade mais justa” ganhou foros de radicalismo. Veja-se a timidez bem-comportada e a asséptica linguagem tecnocrática dos partidos que foram em tempos da social-democracia, do PS ao Labour e ao SPD alemão, apenas levemente distinguível do discurso da direita. As vias de acção política trilhadas parecem estreitar-se cada vez mais e, mesmo dentro do espectro partidário disponível, os cidadãos concentram os seus votos num estreito caminho, numa tendência tão marcada para o conservadorismo e para o recuo civilizacional que em Portugal até se criou um leque partidário especial, um lequezinho de escolhazinhas mais pequenininho, um pequenino directório de partidos convenientes, bem-comportados, atentos, venerandos e obrigados, genuflectidos e súcubos, a que se chama “arco da governação”, para sublinhar bem que quem votar fora do penico desperdiça o seu voto e que tudo o que é possível escolher nesta pobre democracia é a cor das senhas dos centros de emprego e que para isso temos três opções diferentes: rosa, laranja e azul-bebé.
3. E, no entanto... No entanto, há razões para continuar a ter esperança e, mais do que esperança, não faltam razões e objectivos para lutar, porque aquilo que queremos para os nossos filhos e para os seus filhos não é diferente do que queriam os homens e as mulheres de há cem anos e ninguém pode ter como ambição ser um escravo com um telemóvel no bolso. Apesar da lavagem ao cérebro a que somos submetidos dia a dia, minuto a minuto, apesar da atracção do “sucesso” e das maravilhas do “mercado” e dos sorteios de Audis, a liberdade não nos parece hoje menos valiosa do que ontem nem a justiça menos urgente. E a liberdade continua a ser possível e a justiça continua a ser possível, porque não nos esquecemos do que representam. Perante os que ridicularizam os sonhos de uma sociedade mais justa e falam em nome do império dos mercados e da finança internacional e da Realpolitik da submissão, temos de dizer coisas simples: uma criança não pode ser condenada à pobreza, à doença e à ignorância por ter nascido nesta família e não naquela. Todos temos o mesmo direito a participar na vida da cidade, ao trabalho, à saúde, à educação. A pobreza é inadmissível porque não é só uma escassez de recursos mas uma condenação à exclusão, à escravidão e ao sofrimento, um roubo da liberdade. Ninguém deve passar fome. A justiça tem de ser igual para todos. Sonhos? Sim. São os sonhos que temos o dever de exigir que os partidos realizem. Estes sonhos são a democracia. São o mínimo que podemos exigir.
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