Querido colega,
Tal como tu, suponho, cresci com as imagens a preto e branco de filmes que descreviam uma Europa meridional em luta para se recompor da calamidade do período entre guerras.
Tal como tu, a minha cabeça transborda de imagens de gente batalhadora, de cujas aflições e afãs nasceram vagas de emigrantes italianos e gregos para destinos remotos, bem como de filmes do tipo Ladrões de Bicicleta e outros gregos parecidos, que construíam sequências cómicas em torno das atribulações de um homem feito para se apoderar de um bolo de queijo ou de um prato de sobremesa. No entanto, surgiu um tempo em que não era tão fácil evocar a pobreza e o despojamento que conferiam a essas sequências cómicas a sua tragicidade mordaz. As nossas sociedades, Itália e Grécia, foram-se afastando da tradição cultural de De Sica, Fellini, Koundoros e Kakoyiannis, até caírem no buraco negro da vulgaridade berlusconiana. Durante esses anos de “crescimento” e de consumo, muitos de nós acalentávamos a esperança de que as nossas sociedades encontrariam em si próprias a capacidade para redescobrir o equilíbrio perdido; para combinar a barriga cheia com o gosto por um cinema decente e preferi-lo aos grosseiros espetáculos televisivos de bisbilhotice exibicionista.
Mas, ai! Não nos foi dado consegui-lo. Antes de alcançar esse equilíbrio – supondo que tivesse sido possível alcançá-lo -, caiu-nos em cima o 1929 da nossa geração. Aconteceu em 2008, exatamente da mesma maneira que em 1929, quando Wall Street colapsou, a moeda comum da época (o Padrão Ouro em 1929, o euro em 2010) começou a fraquejar e rapidamente as nossas elites fracassaram espetacularmente quando tiveram de responder de uma forma racional à marcha triunfante da Crise. Dois curtos anos depois de a crise atingir o meu país, a Grécia, descobrimo-nos a nós próprios, mais uma vez, capazes de nos ligarmos com as sequências cómicas dos filmes dos anos 50 e 60 e com a ânsia por um bolo de queijo e pelo sonho de uma sobremesa.
Quando estudava teoria económica na minha juventude, lembro-me de ter tido graves dificuldades para entender por que razão os governos de entre guerras, de 1929 em diante, tinham fracassado tão estrondosamente no momento de se oporem ao mal-estar económico que tão tragicamente nos conduziu à II Guerra Mundial. Lia textos sobre o compromisso do presidente Hoover com a redução drástica da despesa pública e a não menos drástica baixa de salários enquanto a economia norte-americana implodia, e não conseguia entender como puderam os seus distintos assessores aconselhar-lhe tamanha idiotice. Recusava-me simplesmente a acreditar que se tratassem de más pessoas que desejavam o mal dos seus compatriotas. Mas, ao mesmo tempo, não conseguia entender como teriam podido convencer-se a si próprios de que as suas ações seriam capazes de aliviar os seus sofredores e doridos votantes.
Bom, passaram-se muitos anos desde essa altura, e, depois de tanto tempo, acabei por entender. Olhando para o nosso governo na Grécia desde a erupção da crise da dívida, observando as hesitações dos dirigentes europeus, levando a cabo uma política calamitosa atrás da outra, consegui finalmente entender. Trata-se, pode pensar-se, de uma coisa não muito diferente do que aconteceu nos Estados Unidos no fim dos anos 60 e princípios dos anos 70. No interior do Pentágono, alguns generais inteligentes percebiam perfeitamente que a guerra norte-americana no Vietname não podia ser ganha. Que enviar mais tropas para lutar na selva, que bombardear os vietnamitas com mais bombas de NAPALM, que aumentar em geral o esforço de guerra, era um absurdo. Agora sabemos perfeitamente, por cortesia de Daniel Ellsberg e dos seus esforços heroicos, que estavam totalmente cientes, individualmente e mesmo em pequenos grupos, de que aquilo era um beco sem saída.
E no entanto, era-lhes impossível coordenar-se, sintetizar as suas avaliações e decidir conjuntamente uma mudança de rumo. Uma mudança que teria salvado milhares de vidas norte-americanas e centenas de milhares de vidas vietnamitas, não falando já da enorme quantidade de dinheiro. Uma coisa semelhante está a acontecer em Atenas, em Roma, em Berlim e em Paris neste preciso momento. Não é que os membros das nossas elites não consigam ver que a Europa é como um comboio que está a descarrilar em câmara lenta, com a Grécia na primeira carruagem que sai dos carris, seguida da Irlanda e de Portugal, que arrastam para o descarrilamento as grandes carruagens que vêm atrás: Espanha, Itália, França e, finalmente, a própria Alemanha. Não. Eu creio que o olho do espírito o vê, pelo menos tão claramente como os generais norte-americanos anteviam as cenas finais em Saigão: com os helicópteros resgatando em voo os últimos cidadãos americanos que esperavam, nos telhados da embaixada dos EUA. Mas, tal como os generais norte-americanos, é-lhes impossível coordenar os seus pontos de vista e encontrar uma resposta política razoável. Nenhum deles se atreve a falar quando entra na sala de conferências em que se tomam as decisões importantes, para não serem acusados de “mansos” ou de “extraviados”. De modo que se mantêm silenciosos enquanto a Europa arde, esperando contra qualquer esperança que o fogo se extinga por si próprio, sabendo, no fundo mais fundo do seu coração, que isso não acontecerá.
Enquanto eles hesitam, enredam e manipulam, com Atenas, Roma, Madrid, Lisboa e Dublin em chamas, as sociedades precipitam-se num lodaçal onde a esperança desaparece, o horizonte se desvanece, a vida se desperdiça e os únicos ganhadores são os misantropos, os “odiadores”, os caçadores de bodes expiatórios em forma de alien, de judeu, do “diferente”, do “outro”. À medida que se apagam, literalmente, as luzes no meu país, com famílias que optam por deixar de ter eletricidade para poderem pôr um prato de comida na mesa, bandos de gorilas “patrulham” as ruas à procura do “inimigo”. A ideologia nazi recebe outra oportunidade, tal como a fome e o despojamento, para infetar, mais uma vez, o nosso tecido social. E à medida que as nossas instituições, que os nossos sindicatos operários, que as nossas normas e organizações culturais se vão tornando conchas vazias, pouco, se alguma coisa, se atravessa no caminho desses fanáticos, racistas, exploradores do sofrimento e do desamparo universais. E eis que o ovo da serpente está a incubar novamente na Europa de agora, pelas mesmas razões que na Europa de outrora.
O teu país e o meu partilham muito mais esta triste história do que nos preocupamos em admitir. Antes da Guerra, as nossas sociedades geraram e toleraram regimes fascistas. É verdade que o vosso Mussolini e o nosso Metaxas acabaram por guerrear-se, mas ambos foram produto de fracassos políticos e de desastres económicos que parecem ser inquietantemente similares ao destino partilhado dos nossos dois países nos dias de hoje. Bem sei que na Europa dos nossos dias se anda às voltas com uma estranha e avessa geografia: a Irlanda esforça-se penosamente por argumentar que não é a Grécia, Portugal em defender que não é a Irlanda, Espanha grita a plenos pulmões que não é Portugal e, nem vale a pena dizê-lo, Itália quer dar a entender que não é a Espanha. Eu proponho-te que deixemos de lado essa negação idiota do mal-estar que nos é comum. Evidentemente que a Itália não é a Grécia; no entanto, o atoleiro em que a Itália está cada vez mais metida enquanto eu escrevo estas linhas não pode separar-se de maneira proveitosa do atoleiro em que se encontra o meu país. É possível que a nossa doença seja acompanhada pelo sintoma de uma febre mais alta que a sofrida por vocês, mas – acredita – trata-se do mesmo vírus. A tua febre amanhã chegará ao nível da que nós temos agora.
Muita gente que conheço fora da Grécia, incluindo vários colegas economistas, comete o erro de pensar que o que a Grécia está a viver é uma recessão profunda. Deixa-me dizer-te que isto não é uma recessão. É uma depressão. Qual é a diferença? As recessões são meras desacelerações. Períodos de atividade económica reduzida e aumento do desemprego. Como tu e eu ensinamos aos nossos estudantes, as recessões são para o capitalismo o que o inferno é para o cristianismo: uma coisa desagradável mas essencial para o funcionamento do “sistema”. Os períodos de recessão podem ser redentores, no sentido em que “descartam” do ecossistema económico aquilo que é menos eficiente, as empresas que realmente não deviam continuar ativas no mundo dos negócios, os produtos passados de moda, as técnicas produtivas obsoletas, em conclusão e servindo-me de uma metáfora, os dinossauros.
No entanto, o que está em curso na Grécia não é uma recessão. Aqui toda a gente vai a pique. Tanto o eficiente como o ineficiente. O produtivo como o improdutivo. As empresas potencialmente rentáveis e as empresas com perdas. Conheço fábricas que exportam tudo o que fabricam a consumidores satisfeitos com os seus produtos, com listas de pedidos saturadas e uma longa história de rentabilidade; e, no entanto, estão à beira da bancarrota. Porquê? Porque os seus fornecedores estrangeiros não aceitam as suas garantias bancárias, necessárias para os abastecerem do material que necessitam: ninguém confia já nos bancos gregos. Mas com os circuitos do crédito completamente falidos, esta Crise está a afundar todos os barcos, a destruir todos os batéis, a fazer naufragar toda a sociedade. E quanto mais cortamos os salários, quanto mais subimos os impostos, quanto mais reduzimos os subsídios de desemprego, tanto mais fundo se torna o buraco onde nos estamos todos a afundar. Se alguém quisesse ilustrar o conceito de círculo vicioso, a Grécia de hoje seria o exemplo perfeito de estudo.
Entre nós, de um professor de economia para outro, necessito partilhar um profundo sentimento de vergonha pela nossa profissão. Já sabes que outros académicos costumam comparar-nos aos sismólogos e troçar por sermos tão inúteis como eles na previsão do fenómenos que está no núcleo das nossas respetivas disciplinas. Não lhes falta razão. Como profissão, nunca conseguimos alertar o mundo, ex ante, de um “terramoto” em formação. É possível que alguns economistas isolados o tenham feito, mas também os relógios parados dão corretamente a hora duas vezes por dia. Não. Como corpo de “cientistas” demonstrámos ser tão maus como os sismólogos na altura de dizermos onde, quando e com que força se verificará o próximo terramoto. Só que nós somos muito, mas muito piores que os sismólogos.
Pensa nisto: por detrás de cada CDO tóxico, por detrás de cada engenharia financeira letal, espreitava algum desses modelos originais construídos por nós. Por detrás de cada política económica responsável pelo (pretenso) “crescimento” tipo Ponzi anterior ao crash de 2008, pode sempre encontrar-se algum afamado e respeitado economista que forneceu a cobertura ideológica da política que acabou por ser adotada. Por detrás de cada medida de austeridade que hoje sufoca as nossas sociedades, há também um colega académico cujos modelos e teorias fornecem aos poderes existentes a audácia necessária para infligir aos seus povos o chicote dessas políticas. Em suma: tu e eu somos culpados pelo sofrimento dos nossos compatriotas gregos e italianos. Embora não acreditemos nesses modelos particulares, a verdade é que não fizemos o bastante para alertar o mundo da sua toxicidade. Somos, pois, culpados.
Na semana passada, uma aluna minha, doente de cancro, deixou de poder dispor dos fármacos quimioterapêuticos de que depende, devido ao colapso dos contratos do Estado grego com os farmacêuticos (que estão em luta porque o Estado não lhes paga há 18 meses). Vários dos seus antigos professores (todos economistas) reuniram o valor para poder pagar em dinheiro os fármacos. Gesto útil e solidário, mas que não nos exonera. Somos tão culpados como antes desse gesto deferente. Porque fomos nós quem explicou aos estudantes a eficácia dos mercados financeiros, quem permitiu que a era da financiarização com esquemas Ponzi de tipo piramidal fosse conhecida pelo nome de A Grande Moderação, quem pediu aos seus alunos fé na capacidade das instituições financeiras para fixar preços adequados ao risco: estávamos sentados de braços cruzados enquanto os nossos estudantes liam manuais onde, preto no branco, se contava a grande mentira de que os mercados se auto-regulam e de que o melhor que o Estado pode fazer é não se atravessar no seu caminho e deixá-los obrar por si próprios o milagre. Sim, meu querido colega, as nossas cabeças deveriam estar penduradas na forca da vergonha. Mesmo no caso de termos posto individualmente objeções expressas ao “saber” convencionalmente recebido do grémio.
Antes de terminar esta carta, gostaria de evocar uma última imagem que permite descrever como se sente o meu povo, o povo da Grécia, neste momento. Lembras-te do filme brilhante de Fellini E la nave va? Lembras-te dos refugiados de guerra atirados para o convés e tratados como um incómodo pela tripulação? Não continuo porque tenho a certeza de que te lembras perfeitamente da descrição magistral de Fellini. Pois bem: é assim que os gregos se sentem hoje, e com boas razões, dado que têm de sofrer o papel de bode expiatório, sendo como são a primeira pedra a cair da longa corrente de dominós que ameaça toda a Europa com a versão pós-moderna de uma abominável época passada.
Triste e cordialmente teu,
Yanis Varoufakis
Yanis Varoufakis é um reconhecido economista greco-australiano de reputação científica internacional. Atualmente é professor de política económica na Universidade de Atenas.
Retirado de Sin Permiso
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