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sábado, julho 13, 2013

Em cheio na mouche

A suspensão da democracia
 
O discurso de Cavaco Silva ao País foi um discurso de revisão constitucional. Cavaco Silva reviu a Constituição sem dizer nada a ninguém. Onde se estipula que o Presidente da República jura cumprir e fazer cumprir a Constituição, Cavaco estatuiu que o Presidente da República jura cumprir e fazer cumprir o Memorando de Entendimento com a troika. Onde a Constituição estabelece que a soberania reside no povo, Cavaco Silva colocou perentoriamente que a soberania reside nos credores e nos mercados. Onde a Constituição adota um regime democrático representativo baseado em eleições livres e justas, Cavaco Silva contrapôs um regime de democracia tutelada, em que os partidos se comprometem a adotar a política de austeridade como seu guião supremo e a anular, na prática, quaisquer diferenças sensíveis a esse respeito.
 
Agora o País ficou a saber a razão de tanta preocupação de Cavaco Silva com o "pós-troika". O pós-troika, em versão cavaquista, é a troika eternizada por revisão constitucional implícita. E, em nome do pós-troika assim entendido, Cavaco Silva transformou a suspensão da democracia, insinuada há tempos como uma ironia, numa realidade política concreta. Portugal é hoje um país com uma democracia suspensa.
 
O primeiro passo da suspensão da democracia é a manutenção em funções do atual Governo, com ministros que se demitiram e depois afinal já não, com outros que já se tinham despedido dos respetivos gabinetes, com putativos entrantes já à porta dos ministérios, etc. Este Governo passa a ser um híbrido entre um Governo pleno sem uma réstia de crédito político e um Governo de gestão em regime de serviços mínimos com prazo à vista e substituto identificado. É evidentemente a pior das soluções em termos da tão propalada defesa do interesse nacional, sobretudo quando está aí o pacote gigantesco de austeridade de 4700 milhões de euros como contrapartida das próximas tranches do financiamento da troika. Um Governo assim não ajoelha, é feito para ajoelhar.
 
O segundo passo da suspensão da democracia será a transformação das eleições pré-marcadas para junho de 2014 numa votação mas não numa escolha. Haverá urnas, papelinhos e cruzinhas, haverá até comícios e discursos inflamados de circunstância. Mas o resultado será sempre o "compromisso de salvação nacional": o partido que ganhar e os partidos que perderem defenderão a mesmíssima filosofia orçamental, a mesmíssima orientação para os serviços públicos, a mesmíssima visão de país pequenino e vendido a retalho. O conceito de "salvação nacional" para Cavaco é claro: cumprir o memorando custe o que custar e eternizar a sua lógica e as suas orientações até ao infinito e mais além.
 
Há algo de redundante nisto, pois que os três partidos convocados pelo Presidente a esse compromisso já se comprometeram há muito quando firmaram o Pacto Orçamental ditado por Berlim. Mas a operação de Cavaco é justamente essa: confirmar a maioria do Pacto Orçamental e do Memorando, amarrando nela o Partido Socialista. E assim fará o que a Direita governamental e parlamentar não conseguiu: integrar o PS numa maioria social e política que imponha a austeridade toda. Esta é por isso a hora do PS. Ao repto de Cavaco, o PS não pode continuar a responder "nim", falando contra a austeridade ao mesmo tempo que assevera aos mercados que está pronto a governar cumprindo escrupulosamente todos os compromissos internacionais de Portugal (leia-se os que nos condenam à austeridade sem fim). Agora tem de escolher um lado ou o outro. Cavaco subiu radicalmente o patamar de pressão sobre o PS. Da decisão do Largo do Rato depende boa parte da possibilidade de uma alternativa à suspensão da democracia.
 
 

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