Entre 2007 e 2012 Portugal teve quatro greves gerais e várias greves gerais da administração pública. Este número é histórico, incomum. Independentemente da sua maior (como na greve geral de novembro de 2010) ou menor mobilização (como em março de 2012), este número expressa o desconforto na capacidade de a sociedade portuguesa como um todo, nos moldes capitalistas, suportar as diferenças sociais que a atravessam: uma taxa real de desemprego de 24% (1 milhão e 400 mil desempregados), 35% dos quais jovens, 3 milhões de pessoas a viverem abaixo do limiar de pobreza, quase meio milhão a receber o salário mínimo, cujo valor líquido corresponde a 432 euros. E, estima-se, cerca de 300 mil a receber abaixo do ordenado mínimo em condição de subemprego. 42,2% dos Portugueses são pobres antes das transferências sociais.
Esta crise, cujas medidas contracíclicas devastaram setores importantíssimos das classes trabalhadores e setores médios da sociedade, está provavelmente a destruir também as condições que permitiram estas medidas, ou seja, o pacto social. Ainda estão no pacto social alguns, mas a grande maioria – metade da força de trabalho (precária e desempregada) – está fora. A erosão da base social que sustentou o regime democrático é evidente, a «classe política» é denegrida, os ministros perseguidos ao som da Grândola, tendo mesmo em locais tradicionalmente conservadores sido recebidos com gritos, apupos e até um coelho enforcado.
A diferença entre as mobilizações de rua (por mais de um vez 1 milhão de pessoas saíram às ruas) e a expressão eleitoral é evidente, e as sondagens não mostram nenhum ganho substancial entre a esquerda parlamentar, nesta situação social em que um dos principais empresários, Belmiro de Azevedo, fala de «carnaval de manifestações».
Se na Itália venceu um ‘palhaço’, em Portugal vence o desprezo pelo Parlamento – é curioso como os organizadores (onde estão as lideranças do BE e do PCP, mas escondidas como frentes de precários, mulheres e outros heterónimos) procuram retirar as manifestações da frente do Parlamento, numa espécie de sinal inconsciente para explicar ao povo e contar às criancinhas que o «mal não está ali».
Em vão, a rua cada vez mais é o «voto com os pés», e o reflexo disso não é um aumento dos votos na esquerda parlamentar, mas a erosão do regime democrático-representativo que em nada se afirma como «a pior forma de governo, exceptuando todas as outras que têm sido experimentadas» (Churchill), mas apenas como aquele que permitiu destruir os nossos salários. Regime, aliás, em crise – e não porque haja qualquer perigo de fascismo. As classes ricas em Portugal, escondidas atrás de executivos das jotas, não sabem o que hão-de fazer porque o país fica cada vez mais difícil de governar sem direitos sociais, e as soluções ditatoriais não têm qualquer base social num país que derrotou a ditadura há 40 anos e onde até militares, é certo que reformados, avisam que não vão reprimir «o povo». Para haver fascismo não basta haver ingovernabilidade e armas, é preciso base social, e essa base social é hoje inexistente em Portugal. Ameaçar com o fascismo é acenar com o keynesianismo e dizer: «mau connosco, pior sem nós».
Não há perigo de fascismo, há a oportunidade de percebermos que das duas uma: ou tiramos o nosso dinheiro do Estado, a quem através de contribuições e impostos confiamos parte do nosso salário, ou controlamos o Estado. Ou seja, e resumidamente, compreendermos e construirmos mecanismos de autogoverno em que os muros dos Parlamento são derrubados por gente que sabe que será difícil começar de novo, mas pior é morrer de velho num país onde, se não houver reacção, teremos os melhores a emigrar, os mais velhos maltratados e humilhados, a degradação dos que vivem de programas assistencialistas e as donas de casa a votar.
1 milhão e 300 mil licenciados, 5 milhões e meio de população activa, 2 milhões e meio de reformados – quanto saber há acumulado nestas pessoas para que possam mostrar que podem governar-se a si próprias? Afinal, o país é o que vem no Correio da Manhã, um país onde, sem o Estado, todos se matam uns aos outros, ou é o país dos que cada dia carregam o peso de chegar ao fim garantindo o melhor para si e para os seus?
A esquerda parlamentar está refém do seu programa, que não é alternativa. Esforça-se por propor soluções neo-keynesianas, como se o dinheiro fizesse dinheiro, adopta mesmo o léxico da economia vulgar – ouve-se das bocas de Louçã e Jerónimo de Sousa como recuperar a competitividade, crescimento, economia da nação, sacrifícios «nem sempre para os mesmos». Aquilo que é central – digamos, o início de uma boa conversa para qualquer solução, não ainda a solução, mas o início dela –, passa ao lado, para conservar os votos: controle público sobre a banca e do sistema financeiro, suspensão do pagamento da «dívida» pública, e a saída do euro. Com rigor, nacionalizar primeiro a banca, evitando a fuga de capitais, suspender o pagamento da dívida (uma renda de capital) e sair do euro. Francisco Louçã escreveu hoje que a saída do euro iria desvalorizar os salários em 50% e criar o caos. Merkel diz o mesmo. Esqueceu-se Louçã de escrever que o salário já desvalorizou – quanto: 40%, 50%? – por causa de estarmos no euro. E que sair do euro implica em primeiro lugar o fim do euro – porque o Fundo de Estabilização não aguenta nenhuma saída nem de um país pequeno. O BCE tem esqueletos no armário, milhares de milhões de títulos que não valem nada a não ser que se reduza o nível do custo unitário do trabalho para níveis históricos. Sair do euro implica também uma situação revolucionária que, no mínimo, anula as dívidas, nomeadamente as da habitação (uma boa parte, aliás, já pagas se descontado o lucro da banca!).
Se saíssemos do euro, o que faria a Sra. Merkel? Enviava panzers para Portugal? Logo para o país da Maria da Fonte e do 25 de Abril!? E nós: fugíamos? Congelavam os financiamentos? Para Portugal, um país da Europa, em 2013? Foi isso que fizeram na Islândia? E como reagiriam os povos de Espanha, Itália, Grécia ao congelamento do financiamento a Portugal? Vinham para as ruas celebrar ou iam para casa, mortos de medo, a fugir do «caos»?
A esquerda que não o é, a esquerda que entra na chantagem oficial – sair do euro será o caos! – tem os seus votos congelados porque os seus limites são palavras, e essas leva-as o vento. Gritam «que se lixe a troika», mas defendem o programa da troika, neste caso uma troika mais generosa, com renegociação da dívida, manutenção do euro, banca mista. Este Governo não caiu porque quem tem obrigação de ser alternativa tem medo e inventou um programa distópico que diz «isto com eles é mau, sem eles é pior».
Esqueceram-se de dizer que líderes que não sabem para onde vão não são necessários. Modestamente, penso que devem, se fizerem o favor, sair do caminho e deixar que aqueles que ainda acreditam na utopia tentem ser felizes. Porque isto é tão mau com eles, que a partir daqui, sem eles, só pode ser melhor.
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