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quarta-feira, abril 06, 2022

E No Princípio Era A Pergunta: Para Que Serve A Universidade?

 A universidade alienada

"Um destes dias deparei-me com um post no Facebook de umas colegas, professoras universitárias, que se congratulavam por terem finalmente conseguido publicar um artigo numa revista consagrada com um alto fator de impacto. O seu júbilo era proporcional à crença que os universitários depositam nos mecanismos de mercantilização do saber. As revistas e as suas editoras são um negócio de muitos milhões que se alimenta do reconhecimento generalizado de que o conhecimento aí publicado multiplica milagrosamente o seu valor no mercado, independentemente da sua qualidade. 

Por outras palavras, a qualidade é tão só o estar publicado com aquela referência. Antes de publicado, é um não-saber; depois de dado à estampa transmuta-se em algo sagrado. Para esse efeito, criaram-se complexos mecanismos, uns explícitos outros ocultos. No primeiro caso encontramos os ritualizados processos de revisão cega por pares (sacerdotes da imparcialidade), de tal maneira que conseguir o aval final significa percorrer uma via sacra de revisões sucessivas (no caso do artigo não ser de imediato eliminado), numa espécie de corrida contra o tempo (importa que o “produto” saia na altura certa para contar para um concurso ou uma avaliação de desempenho, onde geralmente não são lidos, mas apenas contabilizados numa hierarquia que corresponde ao ranking da “marca” que os publicou). 

Além desses critérios manifestos, jogam-se outros, de cariz subterrâneo: é preciso escrever de uma determinada maneira, adestrada para ser tida como legítima; repetir o que outros já disseram, se tidos como autoridades no domínio em questão ou criticar os que, à luz da última moda, caíram em desgraça; citar amigos para forjar alianças, evitando futuras desavenças e mostrar mestria na langue de bois, essa performance linguística da duplicidade que consiste em evitar o dissenso e o debate pela instalação no cliché e no conformismo.

Publicar ou perecer, dir-se-ia, publicar para não se esquecerem de nós, para impressionar os júris, as agências de avaliação, os colegas, os superiores hierárquicos; publicar, sobretudo, para não ser desclassificado. O que se escreve conta pouco, pois o fetichismo (do português feitiço) da marca (o contentor, o invólucro) dita as suas leis. Assim, os artigos são coisas que, uma vez valorizadas, permitem comparar e medir os seus autores independentemente da qualidade intrínseca do seu pensamento. Sendo uma mercadoria, tais “produtos” regem, tal como Marx o analisou, as relações entre as pessoas como uma relação entre coisas (valho mais do que tu porque tenho mais artigos em revistas com alto fator de impacto)

Se se quiser demorar, maturar ideias, experimentar argumentos e escrever um livro, corre-se o risco de passar por tolo. Por isso, a publicação em livros, mesmo em ciências sociais, tende a tornar-se um ato de resistência, uma espécie de statement político, geralmente reservado a uma aristocracia (na qual me incluo) que já fez a sua progressão na carreira e que, se não estiver imersa na gestão do dia-a-dia burocrático e possuir ainda um pingo de lucidez no seu cérebro esmigalhado, aí investe o que lhe resta do seu labor crítico.

As universidades e centros de pesquisa que congregam mais professores e investigadores que publicam muito no olimpo das editoras obterão melhores classificações que, por intermédio do marketing do já instalado capitalismo universitário, captarão mais estudantes, crentes na conversão virtuosa do seu investimento escolar em bons postos de trabalho, uns pontos acima do que David Graebe apelidou de bullshit jobs.

As questões fundadoras (” conhecimento para quê”? “conhecimento para quem?”) tornam-se obsoletas. Por isso, afirmo que a crise da Universidade é hoje uma crise de sentido e de relevância. Sob as lápides dos seus sofredores professores há-de escrever-se: aqui descansa em paz quem publicou X artigos em revistas de impacto; correu como um louco; foi competitivo como poucos. O que escreveu faz-lhe companhia, na mesma sepultura."

A ler: Michael Burawoy, Public Sociology, Cambridge, Polity Press, 2021David Graeber, Bullshit Jobs, New York : Simon & Schuster, 2018

Texto de João Teixeira Lopes

https://gerador.eu/a-universidade-alienada/?fbclid=IwAR3cRYhHnJlSurfiC7Y_GW9nDxMJsVUaN8wpNjkzjg4qAbP9BRkNn6CrNSA

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